Falar em consumo consciente no universo da produção capitalista equivale dizer que Papai Noel traz presentes para ricos e pobres, indistintamente. Nesta sociedade, ser cidadão significa pouca coisa. Ser consumidor, sim. As coisas existem para atender necessidades. Fala-se de coisa essencial. Comida, remédio, escola. E coisas supérfluas. Boneca que faz xixi, ovo falso de tartaruga que posto na água abre e dele sai filhote.
De um lado faltam coisas essenciais. De outro sobram bugigangas. Chegamos no limite do absurdo: no país decantado como celeiro do mundo trinta e três milhões passam fome e outro tanto padece de necessidades alimentares básicas. E o escândalo da fome se completa com o desperdício de trinta milhões de toneladas de alimentos jogados fora.
Assisti documentário sobre crianças órfãs na Itália depois da guerra. Milhares eram acomodadas em abrigos improvisados e recebiam pão e tomates todos os dias. É o que havia para sobreviver. No Brasil, celeiro do mundo, nem isto existe para milhões de crianças. Visitei a Ceasa para ver o tamanho do desperdício. De madrugada, dezenas de caminhões chegam para descarregar hortifruti e centenas de outros saem para distribuir na rede de mercados e feiras. Depois disto, os garis recolhem as sobras descartadas. Formam-se filas de outros caminhões para levar o lixo.
No mercado onde me abasteço vejo o repositor de frutas descartar bananas, aquelas que se desprenderam do cacho. Encheu duas caixas. Pergunto sobre o destino de tanta banana. O lixo, respondeu. Procurei o gerente e pedi as bananas para fazer doce e alimentar crianças de creche alimentadas com qualquer coisa. Disse que a justiça não permite. Foram para o caminhão de lixo a levadas ao aterro sanitário. Fui almoçar com a família num restaurante italiano: vários cortes de frango frito, miúdos e abundância de massas. A cada instante, o garçom pergunta se pode renovar o serviço. Ao final, recolhe o que sobrou que teria sido suficiente para outra família. Pedi para ver onde jogam os restos. Uma caçamba disfarçada vai sendo enchida. Depois de tudo chega o caminhão, iça a caçamba e vai despejar numa granja de porcos. Ali, também, o gerente diz que o juiz proibiu de levar o que sobrou para creches, orfanatos, associações que fazem campanhas contra a fome. Na verdade, não são restos. Trata-se de comido hígida, boa.
Lembro de uma anedota que o padre Batistella contou no catecismo. Disse que uma mãe fugindo da região onde passava fome encontrou embrulho com restos de pão que havia sido abandonado por estar sujo de cocô. Faminta raspou o cocô e serviu seu filho faminto. Pessoalmente vi um catador de lixo escovar o cocô do papel higiênico encontrado na lixeira e guardar numa sacola para usá-lo em casa. O padre Batistella orientava os agricultores para que nada fosse perdido. Dizia que na Itália e Japão, depois da guerra, as famílias compravam só os palitos de fósforo, levavam a caixinha. Fui comprar uva num mercadão. A uva chega embalada em caixas de plástico. Pergunto se devo devolver as caixas. Não, disse o gerente. Perguntei quanto custava cada caixa. Quatro reais, o valor de um quilo de uva. Lixo, montanhas de lixo. A religião do desperdício prega que o homem é bicho insaciável. No chiqueiro onde meu pai engordava os porcos havia espaço para depositar a ração de tal modo que todos os porcos pudessem comer igualmente. Na mesa dos homens não há lugar para todos. Atingimos o cume do desperdício. Algumas pessoas sofrem por estar gordas demais, outras por estarem magérrimas.
Que fazem os cristãos para detratar esta pérfida religião e fazer valer o mandamento de Jesus “que todos tenham vida em abundância”? Com esmolas e campanhas do agasalho não é mais possível. Diz o Papa Francisco na Fratelli Tutti “é necessário mudar o modelo de produção”.