Segundo o teólogo Hans Küng, a Igreja enfrenta crise estrutural. E, se não conseguir superá-la, poderá tornar-se seita residual. Os católicos não se dão bem com figura da crise. Pressentem catástrofe. Já os chineses escrevem “crise” com dois ideogramas, um para significar “ruptura”, outro para dizer “oportunidade”. Algo, como se quebrar os ovos ao colocá-los para chocar, faça omelete.
Esta crise acompanha a Igreja desde a idade média. Sua dimensão foi avaliada pelo Papa João XXIII, ao convocar o Concílio Vaticano II. Disse ele que era necessário abrir as janelas da Igreja para arejá-la com os novos ares. Seu interior, como um porão escuro, andava mofado.
O Papa Francisco, com firme insistência, convoca os bispos para sacudirem o mofo do tempo, redescobrirem a pobreza evangélica, se desfazerem de atavismos que imobilizam a igreja. No dia 9/6/22, falando para o clero da Sicília, pediu que abandonem “rendinhas e barretes”, símbolos medievais que não fazem mais sentido. São coisas supérfluas, esquisitas para o povo.
Procurei o padre Leonardo Dall Osto e pedi que me explicasse o sentido do pedido do Papa. Ele me remeteu ao Sacrossanto Concílio, o primeiro documento aprovado no Concílio Vaticano II. Trata da reforma litúrgica. Até então a missa era celebrada em latim, o padre de costas para o povo, que só respondia amém.
Mas, nem todos os bispos acataram as orientações do documento. Muitos continuaram celebrando do mesmo jeito. Proibiram missas nos vernáculos, ou no clima dos folclores, como a “missa gauchesca”. Para justificar a recusa de acatar o espírito do Concílio, dizem que os aparentes enfeites da indumentária litúrgica aproximam mais os fiéis de Deus, aumentam o clima místico, e preservam a tradição.
Padre Leonardo lembra que a eucaristia deveria ser celebrada imitando Jesus na última Ceia. A missa solene não é mais missa do que a celebração feita num acampamento do MST, diz. Continua dizendo que o Papa Francisco espera que o clero se desfaça dos enfeites que usam para tornar a missa mais bonita. Pedi, então, para apontar um bispo que assumiu integralmente o espírito do Concílio. Ele me sugeriu o livro “O bispo de Volta Redonda. Memórias de D. Valdyr Calheiros”, escrito por Célia Costa.
Volta Redonda foi o berço da siderurgia brasileira, a Cidade do Aço. Grande centro operário. Desde 1964, D. Calheiros foi bispo engajado na vida dos operários, um apóstolo a serviço da Juventude Operária Católica, a JOC. Seu longo magistério esteve a serviço dos pobres, injustiçados e oprimidos. Morreu em 2013, venerado como um profeta que fazia de sua vibrante palavra e testemunho de vida sua mistagogia, ou seu jeito de ser bispo. Nunca foi visto ornamentado com “rendinhas e barretes”. Ele se fazia assíduo operário da Vinha do Senhor junto aos operários do aço.
Conheci pessoalmente D. Calheiros. Ele olhava seu interlocutor com olhos sedutores. Fez-me lembrar o canto “Lá na Praia... Tu me olhaste nos olhos”. Participei de missa que celebrou numa pequena capela de bairro operário. Era possível sentir a mística que emanava daquele simples altar. Talvez seja este valor que o documento Sacrossanto Concílio quis resgatar, e que a tradição deixou ao longo do caminho da história. E, com certeza, deverá ser isto que o papa pediu ao clero siciliano. A mesa eucarística precisa voltar a ser o centro da vida cristã, onde a simplicidade e o amor sejam vividos pelos comungantes.
Mas, a crise da igreja está longe de ser superada, diz Hans Küng. O Clericalismo enraizou-se na estrutura da igreja como a parasita que crava seus tentáculos no caule da árvore hospedeira. Depois de certo tempo a parasita e a hospedeira tornam-se um único ser.