Menino escondido
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segunda, 13 de janeiro de 2025

Mais ou menos 170 pessoas se perfilam na direção de 13 caixas de supermercado abarrotado de consumidores. Véspera do réveillon.   Visíveis sinais de pressa, inquietação e nervosismo. A cidade litorânea recebe milhares de visitantes que disputam os minguados espaços para estacionar o carro, e se movimentar no meio de efusiva agitação. Logo mais, doze toneladas de fogos enlouquecerão os que acreditam que, de fato, haverá a morte de um ano e o nascimento de outro. O novo ano será saudado com farta mesa. As encrencas do cotidiano serão relativizadas ao cantar em coro “muito dinheiro no bolso saúde para dar e vender”.

Mas, as filas não andam. Carrinhos abarrotados de mercadorias tornam os estreitos corredores ainda mais inviáveis. Isto, não se pode andar. Faço parte deste cortejo imobilizado, mas não padeço da síndrome da pressa. Faço da situação atípica momento de observar como as pessoas se comportam em momentos de sufoco. A maioria move resignada os pés, desde que não dá para andar. Pouco atrás, na outra fila, dois turistas mostrando o rosto avermelhado pelo escaldante sol de fim de ano, exibem pose de gente importante. Sua pose de altivez se completava com a prosa que improvisavam. Entre os dois homenzarrões se escondia menino mal vestido que segurava pequeno saco de papel nas mãos, visivelmente sujas. Ele carrega duas coxinhas. O valor já estava afixado na borda do saquinho: cinco reais. Ele não tem nenhum dinheiro para pagar a compra. Aguarda que algum consumidor se compadeça dele e lhe pague a conta. Parecia ser filho de índios. Nesta época, a cidade recebe, além de turistas garbosos, famílias índias que buscam respigar migalhas que caem da mesa dos abastados.

Os dois turistas teriam já farejado a procedência social do garoto pois trocavam ideias preconceituosas contra esta gente desgarrada da história do Brasil. Dizia um para o outro: “esse pessoal não tem jeito. São vagabundos. O governo deu a eles mais de 50 milhões de hectares de terra e eles, ao invés de trabalhar, vem pedir esmola na cidade. Eles precisam fazer como eu sempre fiz. Trabalhei a vida inteira. Lutei desde guri. Nunca ganhei nada do governo. Tudo o que tenho foi molhado com o suor de meu rosto”. O outro emendou: “e esse pessoal sem terra já passou o tempo de parar de invadir propriedades produtivas. Tá na hora de fazer como meu pai me ensinou, trabalhar de sol a sol, poupar o dinheiro e investir. Meu pai tinha pequena propriedade. Hoje tenho mais de dois mil hectares. Preciso de gente para trabalhar, mas ninguém mais quer trabalhar. Uma tropa de vadios sustentados pelo governo.”

Pouco antes de chegar a vez do menino escondido entrar no corredor do caixa, ele levantou a cabeça e olhou para aqueles dois homens arrogantes e sem compaixão.  Mostrou seu minúsculo pacotinho como implorando que o socorressem. Nisto, Ruth fez sinal ao operador de caixa que ela pagaria a conta do menino. Ela também observava o abismal contraditório entre uma criança que vai ao supermercado sem nenhum dinheiro para pagar duas coxinhas e os fazendeiros do agronegócio que empurravam carrinho entupido das melhores mercadorias reservadas para a celebração do nascimento do ano novo.

Os filósofos gregos da antiguidade falavam que o deus Zeus havia gerado Cronos, o deus do tempo. Cronos se alimentava dos próprios filhos. Era deus voraz e impiedoso. A festa do réveillon tornou-se liturgia pagã de devorar os próprios filhos. A relação dos comensais com a mesa farta já não é mais de festa, mas de bacanal. Bacco era outro deus beberrão. Ao comer e beber de modo insaciável acaba-se sendo comido pela gula.

O Cristianismo originou outra ideia de tempo, o Kairós. Tempo oportuno para receber a graça, o tempo que nos alimenta de esperança. O Cronos nos come de modo insaciável. O Kairós nos alimenta de modo abundante.

Aquele menino escondido na fila do supermercado, sem saber, reeditava o que fez outro garoto escondido na multidão que seguia faminta a Jesus. Na minúscula sacola ele levava porção de peixe e de pão. E ali se fez o Kairós para todos aqueles que desejam serem chamados de pessoas de boa vontade.

Mais ou menos 170 pessoas se perfilam na direção de 13 caixas de supermercado abarrotado de consumidores. Véspera do réveillon.   Visíveis sinais de pressa, inquietação e nervosismo. A cidade litorânea recebe milhares de visitantes que disputam os minguados espaços para estacionar o carro, e se movimentar no meio de efusiva agitação. Logo mais, doze toneladas de fogos enlouquecerão os que acreditam que, de fato, haverá a morte de um ano e o nascimento de outro. O novo ano será saudado com farta mesa. As encrencas do cotidiano serão relativizadas ao cantar em coro “muito dinheiro no bolso saúde para dar e vender”.

Mas, as filas não andam. Carrinhos abarrotados de mercadorias tornam os estreitos corredores ainda mais inviáveis. Isto, não se pode andar. Faço parte deste cortejo imobilizado, mas não padeço da síndrome da pressa. Faço da situação atípica momento de observar como as pessoas se comportam em momentos de sufoco. A maioria move resignada os pés, desde que não dá para andar. Pouco atrás, na outra fila, dois turistas mostrando o rosto avermelhado pelo escaldante sol de fim de ano, exibem pose de gente importante. Sua pose de altivez se completava com a prosa que improvisavam. Entre os dois homenzarrões se escondia menino mal vestido que segurava pequeno saco de papel nas mãos, visivelmente sujas. Ele carrega duas coxinhas. O valor já estava afixado na borda do saquinho: cinco reais. Ele não tem nenhum dinheiro para pagar a compra. Aguarda que algum consumidor se compadeça dele e lhe pague a conta. Parecia ser filho de índios. Nesta época, a cidade recebe, além de turistas garbosos, famílias índias que buscam respigar migalhas que caem da mesa dos abastados.

Os dois turistas teriam já farejado a procedência social do garoto pois trocavam ideias preconceituosas contra esta gente desgarrada da história do Brasil. Dizia um para o outro: “esse pessoal não tem jeito. São vagabundos. O governo deu a eles mais de 50 milhões de hectares de terra e eles, ao invés de trabalhar, vem pedir esmola na cidade. Eles precisam fazer como eu sempre fiz. Trabalhei a vida inteira. Lutei desde guri. Nunca ganhei nada do governo. Tudo o que tenho foi molhado com o suor de meu rosto”. O outro emendou: “e esse pessoal sem terra já passou o tempo de parar de invadir propriedades produtivas. Tá na hora de fazer como meu pai me ensinou, trabalhar de sol a sol, poupar o dinheiro e investir. Meu pai tinha pequena propriedade. Hoje tenho mais de dois mil hectares. Preciso de gente para trabalhar, mas ninguém mais quer trabalhar. Uma tropa de vadios sustentados pelo governo.”

Pouco antes de chegar a vez do menino escondido entrar no corredor do caixa, ele levantou a cabeça e olhou para aqueles dois homens arrogantes e sem compaixão.  Mostrou seu minúsculo pacotinho como implorando que o socorressem. Nisto, Ruth fez sinal ao operador de caixa que ela pagaria a conta do menino. Ela também observava o abismal contraditório entre uma criança que vai ao supermercado sem nenhum dinheiro para pagar duas coxinhas e os fazendeiros do agronegócio que empurravam carrinho entupido das melhores mercadorias reservadas para a celebração do nascimento do ano novo.

Os filósofos gregos da antiguidade falavam que o deus Zeus havia gerado Cronos, o deus do tempo. Cronos se alimentava dos próprios filhos. Era deus voraz e impiedoso. A festa do réveillon tornou-se liturgia pagã de devorar os próprios filhos. A relação dos comensais com a mesa farta já não é mais de festa, mas de bacanal. Bacco era outro deus beberrão. Ao comer e beber de modo insaciável acaba-se sendo comido pela gula.

O Cristianismo originou outra ideia de tempo, o Kairós. Tempo oportuno para receber a graça, o tempo que nos alimenta de esperança. O Cronos nos come de modo insaciável. O Kairós nos alimenta de modo abundante.

Aquele menino escondido na fila do supermercado, sem saber, reeditava o que fez outro garoto escondido na multidão que seguia faminta a Jesus. Na minúscula sacola ele levava porção de peixe e de pão. E ali se fez o Kairós para todos aqueles que desejam serem chamados de pessoas de boa vontade.

 

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